Decantar
Quando alguém chega esbaforido com algo da vida, minha
dica é:
"...deixe decantar ..."
"...deixe decantar ..."
Sinto um olhar ressabiado, afinal a pessoa não está a
beber vinho, mas envolta em algo que duvida sobre como proceder.
Diante da inutilidade de minha presença quanto a como
prosseguir,
sustento o silêncio e a respiração alongada.
Arrisco o encontro de um olhar.
Uma parada no cronograma da vida para habitar o tempo
que não medimos.
Experimentamos.
Ao invés de remoer um pensamento a respeito do que se
deve ou não fazer, habitar um intervalo para deixar a vida decantar...
Um ritual realizado antes de servir o vinho
que busca o primor de sua degustação. Portanto, é necessário ser escolhida por um
vinho, abrir a garrafa, deixar que a história deste líquido
se complete entre os ares de nossa respiração.
Estar atenta ao ar que lhe faz contorno, permitindo que o próximo respiro alongue o
gesto que conduz ao exercício de degustar.
Entrega ao tempo sem hora, guiada pelo
anúncio de que este líquido está vivendo o trajeto de aproximar-se de seus lábios.
Talvez, já conheças este vinho e sabes do que se
trata.
Mas e os humores?
Teus e da singular história desta garrafa que encontra
tuas mãos?
O aroma pode nos embriagar de um passado que
revisita o corpo como ressaca. Aquele zumbido incômodo que enuncia a
repetição do desgosto. Mas pode ser a embriaguez de deliciar a sensação
de querer mais e mais do que passou. É ali - no (des)gosto - que o pensamento
se apega como forma de não vislumbrar que o tempo é feito de movimento.
"...deixe decantar..."
Habitar a intensidade da vida é aceitar que a
imprevisibilidade que tanto tentamos evitar é a única certeza que nos move.
Li que a passagem do vinho de sua garrafa
original para um decantador possibilita libertar os aromas que estavam contidos
na garrafa, ampliando a degustação de seu paladar.
O vinho respira.
Para decantar a vida temos o exercício de
libertar o tempo planejado, acolher os ares da experiência e
apreciar a vista no horizonte.
Deixar para trás os resíduos da explicação e degustar
uma conversa solta e amiga, um abraço demorado, um olhar sem fim, uma música
que embala, um respiro.
Perder-se no silêncio
dos aromas...
E quando o
som barulhento do pensamento se aproxima com a tarefa impossível de
retornar ao que passou, escutar o ritmo e deCantar o ruído.
Respirar a melodia da
vida acontecendo.
Saborear o líquido que fez da espera o motivo para experimentar o sentido
do presente.
Um mimo da vida.
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