Escrita de uma professora.



Entre felicitações do dia da professora  e discursos que hoje em dia não  se deseja mais essa profissão, resolvi escrever. 

As vezes,  achamos que pouco  aconteceu numa sala de aula marcada pelas classes em fila, os horários, as avaliações.  E de repente, anos depois,  alguém lhe diz: lembra aquela aula que disseste tal coisa, nunca esqueci, faz todo sentido no meu trabalho... O ritmo da vida contemporânea desconsidera o movimento de aprender. Queremos estatísticas educativas, futuros trabalhadores consumidores.

Meu trabalho de  professora é povoado de encontros. Um processo que ultrapassa os atos da rotina docente e as solicitações da vida atropelada que acelera o movimento sem saber que destino busca. Vivo relações singulares que  vão sendo impregnadas da vida de cada grupo com o qual trabalho no acontecimento da busca do sentido do aprender.

Algo  acontece que transgride o esforço de planejar e controlar a vida educativa  em  conteúdos e  etapas  que devem ser vencidas. Entre lembranças  visito o texto que escrevi aos formandos  de 2002, no curso de psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Quando esta turma se constituía, em 1998,  eu era admitida nesta Universidade. Em tempos de tanto descrédito nas instituições públicas, me orgulho de ter feito esta opção, pois construo aqui uma psicologia e uma formação que insiste no compromisso social, na solidariedade e no enfrentamento de nosso desassossego contemporâneo.

Não tenho dúvida quanto às contribuições de muitos de nossos estudantes nas mais diferentes comunidades, construindo os lugares da psicologia e da universidade pública em ações comprometidas  com o fazer-se educador no humano.

Não estamos no passado ou no futuro. Optamos pelo acontecimento onde o sujeito se faz a todo  momento, porque agencia a vida na relação com o outro. Portanto, não basta formar-se nesta ou aquela profissão. 
É preciso produzir modos de aprender ao compor o  mundo que vivemos  no diálogo e respeito ao outro.

No cotidiano, a inquietação com a formação e o lugar de educador transborda os encontros de uma sala de aula. Conversamos  nos corredores, nos bares, nos e.mails. Criamos novos projetos, nos envolvemos com as demandas da cidade. Compartilhamos as angústias de como passar  do lugar de estudante  para o lugar  profissional. Debates fervorosos sobre as abordagens teóricas, a greve,  a dimensão  pública de nossa sociedade.

Bem sabemos que  nossa maior aprendizagem  está em criar com o outro narrativas de um saber que o habita para dar forma às suas respostas e que, paradoxalmente,  o próprio sujeito desconhece. Diria inclusive que em se tratando de nós, brasileiros e brasileiras, a principal tarefa é criar visibilidade  ao saber existente e tão facilmente desqualificado. Um povo que trabalha e  constrói de forma digna este país, mas  em grande parte vive com tão pouco, não aprende? Uma subjetividade que se reinventa a cada dia, aprendendo  e ensinando na luta de ser cidadão.

Então, poderia haver compromisso maior de professores e de  profissionais   formados por uma universidade pública, sustentada por cidadãos brasileiros, que implicar-se com a  política de aprender na  vida? 
Quando  inicia essa travessia? 
Ela termina?
Não estamos numa embarcação solitária que atravessa o mar em busca de um horizonte.
O horizonte não está ao final do mar.
O horizonte se produz no nosso olhar.
Então é preciso viver o mar.
Sentir o cheiro do sal.
O toque da brisa no rosto.
A areia nos pés.
Ouvir os sons repetidos das ondas que nos acolhem em seu embalo e nos indagam, a cada instante,  sobre a possibilidade de outro singular movimento.
Um  acontecimento que aguarda nossa humanidade e autoria.
Talvez,  a pergunta já não seja se queremos ser professores, mas se queremos aprender...



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