A agenda e a borboleta


Ela acordou  com a sensação que tinha deixado o tempo passar.
Os lençóis e o cobertor faziam do relógio um artifício sem utilidade. Embalada pelo sábado  cinza achava que  o sol não apareceria para convocá-la a viver a luminosidade de um novo dia. Assim, a lista de tarefas pendentes faria do cinza trabalho.  O tempo engolido pelas   tarefas a serem vencidas seria vivido como se um novo dia não houvesse. Mas os pontos de luz que ultrapassavam a janela convocavam o  olhar e movimentavam os   alinhavos  do  corpo com os lençóis e o cobertor.

Então, levantou. Venceu o trajeto de uma  noite que  permanecia na cama  produzindo  pesadelos com olhos abertos. Fez dos fios de alinhavo o enlace com a janela. O sol inundou o quarto e deixou a escuridão passar pelo  encontro  do corpo com o dia. As linhas viraram caminhos de vento. Já não era possível vacilar diante de tal acontecimento.   A janela aproximou  as ruas que reuniam vozes  a solicitar  a companhia dos passos de mais uma caminhante.

Mas e a  lista de tarefas aguardando?? Ela ficou a pensar que se as tarefas ultrapassavam  a agenda,  nunca daria  conta deste  cronômetro de um tempo sem espaço. E decidiu que   se algo ficaria para trás não seria ela. 


Ilha do Pavão - Porto Alegre
Do caminhar pela cidade veio o convite para andar pelas águas e ilhas  que namoram a vida  deste  Porto envaidecido com seu nome Alegre. O rio acolheu os passos que navegaram  em caminhos guiados pelo céu. Pousou seu corpo numa das  ilhas que, sem marcar hora,  cuida do continente com seu cauteloso olhar  em direção à  cidade de concreto.
Por ali experimentou o som do  vento tocando o corpo, os cantos de pássaros, as   vozes de crianças que brincavam com árvores que viravam naves espaciais.
Enquanto vivia  o tempo de vislumbrar o cotidiano  acontecer, uma borboleta pousou no seu pé atraída  pelo doce da pele  lambuzada  de protetor solar.  Ela fingiu  que a delicada voadora  ali ficara por encontrar  o pólen que guia o passeio de borboletar,  como se sua pele carregasse o sentido  daquele  voo.  Seguindo o movimento da  borboleta,   deitou  na grama e olhou o céu   tocando o azul. Voou...

Descobriu que não queria voltar. Ela já sabia de sua paixão  pelos mares e rios embalados pelo vento. Quando  deles se aproxima sua  âncora dali resiste sair. Mas a embarcação da volta chegaria e a lista das tarefas da semana  faria coro com o barulho da máquina de navegação.  Era final de um domingo e a segunda com sua semana atarefada bateria na porta.

Sábado, domingo ou segunda, os dias da semana seguiam, mas  qual vida ela desejava fazer  acontecer? 
A leveza de um tempo sem agenda alargou o horário e trouxe  a vontade de peneirar as tarefas marcadas. A borboleta deixou como lembrança a delicada arte  de escolher onde pousar.   A agenda  virou  mapa para desviar  o ritmo de um  cronômetro que já não se sabe a quem atende.  
Atenta ao  delicado toque da vida no percurso de seus passos percebeu que  havia escolhido  alinhavar  o corpo ao voo de seus desejos. 


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