Uma geografia da saudade.



Ano novo,   férias de verão,  feriado  de carnaval. E, logo ali,   os dias de  março à nossa espera  para navegar rumo  à nova estação. A sensação de rotina vai chegando depois da virada deste tal tempo que denominamos  Ano Novo. 


365 menos 31 dias de janeiro; 334 menos 22 dias de fevereiro;   parece que este tal Ano anda mais rápido que nossos passos.  Se,  por um lado, temos a sensação que é preciso  acelerar nosso andar, por outro,   o trajeto nos convida  a experimentar os sentidos provocados no  percurso. Despertados da aceleração pela marca de um  novo ano,   voltamos  à  rotina  com mais vagar para perceber  o cotidiano, a agenda,  as relações,  o retorno aos lugares que escolhemos viver.

Porto Alegre - RS
Mas  o  que nos torna de um lugar? O que nos faz permanecer e  ter o sentimento de ser  daqui ou de lá? As pegadas dos  passos de cada dia  fazem o mapa de nosso  exercício de ficar e partir. Para alguns, uma permanência feita da terra herdada entre gerações, para outros, uma terra desbravada pela despedida do lugar que marcou o ponto de partida. Um lugar para morar, para  conviver com uma família e distanciar-se dela, para ter amigos e ficar só.  


A diversidade e o anonimato de uma “cidade grande”;  a tranquilidade e  a intimidade de uma "cidade do interior".   De um modo, ou de outro, permanece uma regra:  estar próximo da experiência que acolhe o labirinto das terras de nosso interior. Entre a escolha e o  acaso, os lugares vão sendo praticados. Afinal, seria possível nos percebermos sem a geografia que faz o contorno ao movimento de nosso corpo?

Nova Prata - RS
Os ventos que trazem essas palavras percorrem a estrada entre a  cidade onde moro e a cidade onde nasci. Entre placas que vão anunciando os quilômetros da distância que vou vencendo,  faço contas, e  chego aos  30 anos de minha atual morada. Os pensamentos e as curvas da serra encontram     a placa verde que indica  "Vila Flores". Minha boca saliva com o gosto de  biscoitos feitos com um lugar da   infância. Ainda não era minha cidade natal, mas tinha o cheiro dela. 


Ainda estaria lá a bela casa do passado feito das visitas maternas para troca de receitas, seguidas de  experimentos culinários que resultavam em biscoitos de todos os tamanhos e gostos? Saio da estrada de meu previsto destino.  Ao avistar a   casa penso:  estará fechada? Mas não estava!

Lá encontrei uma voz conhecida que em minha memória ecoava numa conversa  materna. Não bastasse a casa  e essa acolhedora presença, as prateleiras estavam repletas de biscoitos a escolher. 


Villa do Pão
Vila Flores - RS 
Em minhas mãos o biscoito preferido, a senha para chegar a um lugar desejado,  como se a máquina do tempo fosse o efeito de sua degustação. Descubro, ainda, que o prédio vem sendo preservado pelas novas  gerações. Os  segredos  desta  geografia, arquitetada entre sentidos, permanecerá ali.  



A   manutenção de  prédios que  marcam a vida pública de uma cidade ultrapassa os efeitos registrados num projeto governamental.  Os prédios carregam lembranças de geração para geração, de movimentações políticas, de afetos vividos por cada um que ali esteve. A possibilidade de  retornar aos lugares que fizeram parte de nossa história, nos faz  revisitar  a própria vida e como ela segue sendo feita deste espaço povoado de tantos  que ali estiveram e que desconhecemos. Sentimos um pouco do outro e temos a certeza que não estamos sós na conquista  de uma terra para si, pois ela se faz de nós. 


Uma geografia de estradas, cidades e prédios, que faz a história de lugares  e,  entre seus  traçados, mistura a terra de nossas singulares histórias. Onde nascemos e  brincamos,  aprendemos o alfabeto e deliciamos biscoitos. 
Passo a passo vamos  desenrolando a vida, pois   desfrutamos  do divino presente de ultrapassar um ano após o outro. Talvez aí esteja o verdadeiro sentido de marcar cada ano com um número, seja no nosso aniversário, seja no aniversário do Ano Novo: percebermos a própria  existência marcando  um ponto na história de uma terra que gira  mundo.

A chegada da quarta-feira  de cinzas  misturou lembranças entre labaredas da fogueira da saudade. O aconchego   do gosto dos desejados biscoitos   faz  o tempo permanecer entre dias que passam, mas é preciso estar atento  aos lugares que acolhem nossas vontades. Uma morada feita do lugar onde nascemos, de onde chegamos estrangeiros e escolhemos viver,  de pegadas nômades   e, ainda,  de terras que nos  aguardam chegar.





Comentários

  1. mmmm... traz os biscoitos? eu faço o café.
    a gente mistura os gostos, as histórias e dá novos contornos - de delícias e cores - à vida.
    e, assim, compomos a estética da amizade.
    saudade já.

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  2. Que lindo! Li os últimos e este passou a ser meu preferido. Bj

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